Não podemos ver o vento (cap. 06) - Parte 2

DOMINGO, 9 DE DEZEMBRO DE 2012

NÃO PODEMOS VER O VENTO (cap. 06) - Parte 2

 

Volta a teclar. 
Muito obrigado por tudo, Álvaro. Agora, veja lá se pode ajudar-me noutra coisa: há imensa gente que nunca ouviu falar nos GEs. Há homens da sua idade que estiveram na tropa em Moçambique e não sabem, mesmo, o que foram os GEs. Já ouvi várias versões diferentes sobre as razões de ser deste secretismo. Qual é a sua? Bem, responde daí a pouco o GE bloguista. Vamos lá ver. Se calhar, a minha versão vai desiludi-la; mas eu, de facto, não tenho assim uma visão muito emocionante da guerra. Os GEs eram pequenas forças de intervenção constituídas por militares nativos oriundos das zonas onde, após a instrução, iriam atuar. Só começaram a existir em 1970 e eram muito reduzidos, daí o facto de muita gente desconhecer a sua existência. Para dar um exemplo, na província do Niassa, que é a maior de Moçambique, penso que não existiam mais de três Grupos Especiais; o que, para a quantidade de aquartelamentos existentes na província, era uma gota de água. Daí a razão de muita gente, se calhar a maioria dos portugueses, nunca ter ouvido falar dos GEs. Álvaro, insiste Mariana, sempre à procura da brecha. Sabe o que é que me faz impressão? As vezes, raramente, encontro pessoas que ouviram falar dos GEs.
E imagina qual é a reação delas? E logo, "Eh pá, não te metas com esses gajos, são todos doidos." Consegue explicar-me porquê? Olhe, Mariana, responde-lhe o homem tranquilo de Ovar. Ele há a fama e depois há o proveito, não é? O enquadramento destes militares, que eram instruídos no Dondo, a cerca de trinta quilómetros da Beira, era feito, como já disse, por militares das nossas tropas, em regime de voluntariado. Para o efeito eram escolhidos, na maioria dos casos, treinadores provenientes das tropas especiais. Os treinos eram extremos porque assim tinha de ser, tendo em conta as missões que íamos executar a seguir. Por isso é que éramos considerados "malucos" , o que não era o caso, evidentemente. E o Álvaro, pergunta Mariana, como foi que se juntou aos GEs? Em 1973, existiam pouco mais de vinte e poucos GEs, responde Álvaro no dia seguinte, já totalmente regressado à sua prosa parca. Foi então que o general Kaúlza de Arriaga resolveu constituir mais cerca de sessenta Grupos; e, como não havia voluntários, foram recrutados os membros necessários para os enquadrarem. Foi aí que eu entrei. Nunca fui voluntário para coisa nenhuma. Mas, como era o graduado mais novo da companhia, calhou-me essa sorte. E eu, que quase nem sabia ler nem escrever, e estava lá no meu cantinho, Olivença, no extremo norte da província do Niassa, onde nada se passava, de repente fui recambiado para o Dondo, a fim de formar um Grupo Especial. E olhe que Olivença era mesmo uma pasmaceira. Os únicos tiros que lá se ouviam eram os que nós dávamos às garrafas de cerveja. Na minha companhia não houve um único voluntário para a mobilização, porque isto não era entendido como uma promoção, mas só uma mudança de ramo nas Forças Armadas. Nas histórias da marujada eles, quando se perdem, comem sempre o mais novo, ou então deitam-no ao mar, não él Pronto, neste caso específico, o mais novo foi mandado para o Dondo. Esta mobilização foi-me comunicada pelo meu comandante de companhia, o capitão Patrício Costa, que só me disse para preparar todas as minhas coisas, porque no dia seguinte iria para os GEs. Não era um convite. Era uma ordem. E eu não podia contrariar esta ordem, porque a comunicação já tinha chegado ao Estado-Maior. Nem me despedi, por falta de tempo, da maioria dos meus camaradas. No dia seguinte, de manhã, lá estava eu a embarcar no Cessna do Subtil com destino a Lichinga (ex-Vila Cabral), e daí para a Beira. Apresentei-me no Dondo, e lá comecei uma nova vida. No CIGE (Centro de Instrução de Grupos Especiais) era dada uma instrução muito parecida com as dos comandos, e os próprios graduados eram obrigados a segui-la. Não havia qualquer hipótese de desistência, embora eu nessa altura tivesse passado por muitos sacrifícios. Mas sabe, acho que me aguentei bem pelo sentimento de estar longe das balas da guerra, embora tivesse a certeza de que iria voltar para lá. Mariana não resiste. Com todas essas dificuldades, e sem ter sido voluntário, o Álvaro nunca pensou em fugir? Álvaro Teixeira de Oliveira, GE de Ovar, Portugal, formaliza-se imediatamente. Telefona. E quase que cospe as palavras. Olhe, Mariana, com toda a franqueza: só quem nunca conheceu bem a realidade da vida portuguesa é que pode fazer uma pergunta dessas. Talvez vocês, os intelectuais de Lisboa, vissem as coisas de outra forma. Mas nós éramos o povo. O povo inculto e ignorante gerado pelo regime, que só tinha como referência o que aprendia na escola. Ovar era uma vila minúscula, literalmente no fim do mundo. Os nossos professores, os nossos livros, os jornais, a rádio, a televisão quando apareceu — tudo nos falava de um país grandioso que ia do Minho a Timor. E nós acreditávamos nisso, porque nunca éramos expostos a qualquer contra-argumento. Quando chegou a minha hora de ser chamado para ir para Africa, a noção de lutar pela Pátria, para mim, era indiscutível. E era igualmente indiscutível para todos os que me rodeavam, compreende? Um homem podia ter medo, podia enjoar no barco, podia ter que deixar mulher e filhos, podia ser obrigado a abandonar brutalmente o colo da sua mãe — tudo isso era normal, mas nada disso era razão para não cumprirmos o nosso dever de mancebos. Estávamos formatados assim. Todos nós, e todas as nossas famílias. As mulheres soluçavam discretamente, as namoradas desfaziam-se em pranto, as grávidas agarravam-se todas à barriga, os homens ficavam soturnos e silenciosos, as crianças sentiam toda esta tensão no ambiente e desatavam a fazer birras, mas tudo isto era apenas o ritual de comportamentos que integrava o dado adquirido da nossa partida para o Ultramar. E lá íamos nós. Digo-lhe até mais uma coisa. Enquanto estive em Moçambique, vim cá de férias uma única vez. Não fiz nada de extravagante, fui para Ovar atestar as medidas com o carinho da família. Com todo o dinheiro que tinha ajudei os meus velhos a consertar o telhado da casa, e ainda chegava para boas almoçaradas, bons copos, boa vida, uma vida assim mesmo tranquila e feliz, longe daquele inferno que, visto à distância, me parecia a coisa mais surreal do mundo. Mas julga que alguma vez me passou pela cabeça desertar? Então e os meus camaradas que estavam lá a malhar com os costados? E o outro que havia de ir para o meu lugar se eu não voltasse? Porventura era eu mais do que eles? Alguma coisa me dava o direito de não cumprir com o dever que eles cumpriam? Não, Mariana. Não. Nem pensar. Para as pessoas como nós, o combate pela Pátria era para levar até ao fim. E mais não digo. Espero, sinceramente, que me tenha compreendido. Compreendi muito bem, Álvaro, responde Mariana, vagamente impressionada, sem saber assim muito bem porquê. Peço-lhe desculpa se de alguma forma o ofendi. Por favor, quando tiver disponibilidade, continue a contar a sua história no ponto em que eu a interrompi. Álvaro Teixeira não se faz rogado. Depois de formado o Grupo fui colocado numa localidade, junto da estrada de Chimoio (ex-Vila Pery) para Tete, a sensivelmente trinta quilómetros a norte de Vila Gouveia, onde tinha a missão de atacar a guerrilha e proteger as cargas críticas para a barragem de Cahora Bassa. Quando fomos para o mato, houve uma reorganização total devido ao facto de alguns militares já terem namoradas no aldeamento; e os que não tinham, tinham as tendas de campanha. Todos eles eram livres para constituir família e viverem fora do aquartelamento, mas tinham de obedecer às regras rígidas que lhes eram impostas pela disciplina militar. As nossas missões não eram missões fáceis, dado que existe uma serra entre Moçambique e a fronteira da Rodésia, por onde havia uma grande infiltração de guerrilheiros da Frelimo que pretendiam atingir o corredor de Manica, e ainda uma zona de proteção dos guerrilheiros da ZANU do Robert Mugabe. Nesta confusão de guerrilha, cheguei a uma altura que não sabia contra quem combatia. Era tudo muito complicado. E, ainda por cima, os chineses apareciam em toda a parte e eram mesmo todos iguais. A Mariana não sabe? A Frelimo, por exemplo, estava pejada de chinocas. Grandes guerrilheiros, é preciso que se diga. E mais que as mães. Uma vez abati um. Quando conseguimos identificá-lo, não era nada chinês. Era da Coreia do Norte. Veja-me bem até onde é que isto foi.

(Continua)

Não podemos ver o vento
Clara Pinto Correia

Ovar, 9 de Dezembro de 2012
Alvaro Teixeira (GE)

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